
A primeira opção de curso de Tamiris Tinti Volcean era Biologia, mas ela cultivava uma paixão pelo mundo dos livros que não encontraria espaço nessa área. Assim, desistiu das ciências Biológicas e partiu para Bauru, onde cursou Jornalismo na Unesp. Agora, na primeira semana de dezembro (2020), ela lançará seu segundo livro Solidões Compartilhadas, pela editora Lyra das Artes.
A trajetória acadêmica de Tamiris é extensa, ela também fez mestrado em Comunicação na Unesp. Durante a sua pós realizou um intercâmbio para a universidade principal de Paris: a Sorbonne, que existe desde 1257. Atualmente, a escritora faz doutorado em Literatura Brasileira na USP.
Segundo a escritora, o Solidões Compartilhadas era pra ser, inicialmente, uma grande reportagem, algo mais simples. Porém, com a pandemia ela enxergou que era o momento de lançar seu segundo livro.
A obra é baseada em relatos de mulheres, com as quais Tamiris teve contato durante sua viagem à França e durante uma jornada pelo interior do Brasil. A escritora viajou a pé pelas rotas presentes nos livros Sagarana e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Ao longo dessa trajetória, Tamiris percebeu angústias e solidões que acercam as mulheres de todos os lados do mundo. A Jornalista conta que o livro é sobre o machismo, a opressão e o medo que contaminam o dia-a-dia das mulheres, que recebem olhares de repreensão seja para ir sozinha até a esquina ou para viajar sozinha para outro país. Portanto, ela conta que não é um livro sobre viagens, mulheres que nunca saíram de sua cidade também se identificarão com as situações presentes na obra Solidões Compartilhadas.

Capa do livro Solidões Compartilhadas. Foto: Divulgação
Tamiris ofereceu uma prévia de seu livro, que ainda não foi lançado, para a equipe do Alumni: a crônica Solidão não compartilhada (publicada no final desta matéria). Ela também nos contou sobre sua trajetória, como conseguiu inserir o seu amor pela Literatura em sua carreira e como a Unesp foi fundamental para que uma garota, vinda da classe média baixa, pudesse ter acesso à uma graduação de qualidade e outras oportunidades. Confira abaixo, a entrevista na íntegra:
Você pode nos contar um pouco sobre sua trajetória profissional e acadêmica?
A minha trajetória profissional nunca foi uma linha reta. Sempre que mostro o meu currículo, as pessoas comentam, curiosas, sobre a diversidade de atividades profissionais e áreas de estudo. Fiz vários desvios pelo caminho e não me arrependo deles. Afinal de contas, como diria Rubem Alves, eu só cheguei até aqui porque dera errado, tudo aquilo que eu planejara.
Primeiro, logo após finalizar o colegial, decidi cursar Biologia, na Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto. O caso é que logo percebi que ali não haveria muito espaço para mim e para minha escrita. Não era bem aquilo o que eu gostaria de fazer. Foi quando, em 2012, decidi mudar completamente os rumos e tentar Jornalismo na Unesp, em Bauru. Mudei de cidade e tive que começar do zero, fazer novos amigos, criar uma nova rotina.
Ainda na graduação, comecei a dar aulas de Literatura em cursinhos comunitários e consegui, finalmente, unir minhas duas paixões. Na Iniciação Científica, concretizei essa união e estudei as crônicas de guerra dos correspondentes Rubem Braga e Joel Silveira.
Quando decidi seguir a carreira acadêmica, fiquei em dúvida se prestaria um Mestrado em Comunicação ou se já partiria para a Literatura. Como, à época, o meu orientador topou continuar orientando uma pesquisa que permitisse a confluência entre a Comunicação e a Literatura, decidi fazer o Mestrado na Unesp, como bolsista CAPES, estudando o discurso autobiográfico na Literatura, a partir da obra Hospício é Deus: Diário I, de Maura Lopes Cançado, e no audiovisual, a partir do documentário Santiago, de João Moreira Salles. Junto ao Mestrado, cursei a graduação de Pedagogia. Uma vez que sempre tive a intenção de me dedicar à docência, senti necessidade de me aprofundar nas questões relacionadas à Educação.
Com o tempo, conforme a escrita da dissertação avançava, fui me aproximando cada vez dos referenciais teóricos da Literatura e, assim, naturalmente, mudei de área no Doutorado.
Hoje, sou doutoranda em Literatura Brasileira na USP. Pesquiso a estrutura dos romances do escritor contemporâneo Milton Hatoum e sua recepção crítica em território francês.
Por que optou por um doutorado em Literatura?
Acredito que cheguei no limite das convergências entre duas áreas pelas quais sou apaixonada, a Comunicação e a Literatura. Notei que já havia esgotado as possibilidades de adequar meus projetos dentro da Comunicação. Como eu disse anteriormente, minhas referências bibliográficas passaram, pouco a pouco, a apresentar mais referenciais teóricos da Literatura do que da área Comunicacional e, assim, comecei a encontrar obstáculos que só seriam transpostos se eu fizesse disciplinas específicas da área literária. Foi quando me inscrevi em algumas disciplinas na FFLCH/USP como aluna especial. Eu mudei de área gradualmente, costumo de dizer. Quando vi, já estava totalmente envolvida com a Literatura Brasileira.
Como foi a experiência de estudar em Paris na Sorbonne?
Fiz um intercâmbio para Paris em 2017, durante o meu mestrado. Na Sorbonne, cursei disciplinas do departamento de Letras.
Todo o processo seletivo foi feito diretamente na França, o intercâmbio foi feito de forma separada da minha pós-graduação. Lá, não realizei atividades de pesquisa, mas cursei algumas disciplinas do departamento de Letras.
Eu sempre sonhei em conhecer Paris, então, quando notei que havia a possibilidade de morar lá por algum tempo, decidi arriscar. Consultei meu orientador e ele não impôs obstáculos. Como não havia um vínculo institucional com a Unesp, fiz o intercâmbio por conta e risco, mas foi transformador. Aproveitei muito do que aprendi e conheci nas aulas da Sorbonne na escrita da minha dissertação. É uma outra perspectiva da Literatura e da crítica literária. Foi o que me impulsionou ainda mais a buscar um caminho acadêmico em outra área e em outra universidade.
Qual foi a motivação para escrever o Solidões Compartilhadas?
Eu não planejei escrever esse livro. De início, a minha ideia era reunir relatos de diversas mulheres que viajam sozinhas em uma grande reportagem ou um zine, algo mais simples e independente. Eu havia publicado o meu primeiro livro de crônicas, As pessoas que matamos ao longo da vida, em 2016. Senti que estava na hora de começar a gestação do próximo, que é longa e, muitas vezes, dolorosa. Escrever é despir-se toda, precisa de coragem e, sobretudo, fôlego.
Durante a escrita, ainda despretensiosa, algo ficou latente; as solidões das mulheres é um conceito que vai muito além do ato de viajar sozinha. E essa é uma chave de leitura importante para o livro. Não é, necessariamente, um livro sobre viagens, é um livro sobre como o machismo estrutural e as bases de sustentação da sociedade patriarcal nos aprisiona.
Solidões Compartilhadas significa que nós, mulheres, compartilhamos angústias muito semelhantes, em qualquer lugar do mundo em que vigore o patriarcado. Quando eu falo sobre situações que me ocorreram aqui ou ali, tenho certeza de que essa vivência não foi e nem será única, mas que do outro lado, muitas leitoras vão notar que já sentiram o mesmo, ainda que dentro de casa, ainda que nunca tenham viajado na vida.
Digo isso, porque essas solidões não dão as caras somente em viagens curtas ou longas. Elas aparecem no cotidiano da mulher. Alguém que nunca saiu da sua cidade natal pode se identificar com elas, porque elas são as consequências do sistema opressor em que vivemos. Essas solidões são reflexo do medo, da opressão, da violência de gênero, da dominação, da falta de autonomia financeira, da dificuldade em conciliar vida profissional e vida pessoal, de sentir-se só pelo simples fato de ser mulher. E nós compartilhamos todas elas.
Nos conte mais sobre o livro que será lançado, como essas histórias surgiram?
Na verdade, nada foi premeditado. A minha ida para a França foi a minha primeira viagem internacional. Lá, tive a oportunidade de conhecer muitos países e fazer um mochilão pelo leste Europeu. Como eu sempre carrego um bloquinho de notas comigo, ia registrando, como em um diário, as viagens que fazia. Mas, sem pensar em transformar tudo aquilo em um livro.
Em 2018, retornei ao Brasil e fui selecionada por um edital nacional a participar d’O Caminho do Sertão, de Sagarana ao Grande Sertão: Veredas, fazendo a rota do enredo de Guimarães Rosa a pé. Essa viagem foi totalmente diferente daquilo que eu havia vivido. Eu sentia cada vez mais latente a solidão de ser mulher em um lugar distante da minha zona de conforto.
Quando dizemos que vamos viajar sozinhas ou fazer qualquer coisa sem uma companhia, como ir ao cinema, ao banco ou ao médico, são grandes as chances de encararmos olhares de repreensão e apreensão. Isso porque vivemos com medo de sair às ruas, seja para ir à padaria da esquina ou para cruzar o Atlântico. O medo é, também uma forma de opressão. Uma forma de cercear nossa autonomia.
Não interessa à sociedade patriarcal solucionar as causas dos perigos, mas, sim, seguir reafirmando que eles existem como destino dado e que, por isso, cabe a nós, mulheres, abandonarmos planos, sonhos e ideias para não sofrer as consequências. Percebe o quanto isso é cruel?
Quando uma mulher decide tomar as rédeas da própria vida e cumprir seus planos, independentemente da companhia ou aprovação de alguém, tem-se um ato de resistência. E, convenhamos, ser mulher no mundo é resistir permanentemente.
Eu optei por escrever sobre isso, porque acredito que a leitura é uma ferramenta potente de transformação social. Acredito que esse livro pode abrir os olhos de muitas mulheres, incentivando aquelas que desejam viajar sozinhas, para além disso, oferecendo uma nova perspectiva àquelas que, de alguma forma, sentem-se sós e aprisionadas pelo seu entorno.
No início de 2020, ainda sem saber que passaríamos por todo esse contexto pandêmico, decidi que faria algo bem simples, um zine com alguns trechos curtos para presentear as amigas mais próximas. Depois, veio a pandemia. E eu enxerguei que nunca estivemos tão sós. Era o momento para o meu segundo livro, que será lançado na primeira semana de dezembro pela editora Lyra das Artes, aquele sobre as solidões que eu vivi durante as minhas experiências, eu senti que ele estava pronto, que eu estava pronta. E ele nasceu.
Como a Unesp influenciou na sua formação pessoal e profissional?
Tenho um grande carinho pela Unesp e por todas as experiências e oportunidades que ela me proporcionou. Penso que, se não fosse o ensino superior público, eu não teria conseguido fazer boa parte das coisas que conquistei até aqui.
Meus pais são professores e, por isso, venho de uma família classe média baixa, que não teria condições de me bancar em outra cidade, durante todos os anos de graduação. Eu sempre trabalhei, desde o primeiro ano. E senti uma empatia muito grande por parte dos professores e da própria universidade em relação às realidades diversas dos alunos.
A universidade pública é muito importante para que possamos diminuir as desigualdades sociais e econômicas do Brasil, por isso, devemos lutar constantemente para que ela continue sendo um direito de todos e todas, sempre atentos à democratização do acesso.
Diante disso, não há como contar a minha história pessoal e profissional sem citar a Unesp, as pessoas que conheci nos anos de graduação e pós-graduação e, é claro, a bagagem que reuni a partir da oportunidade de ter aula com professores incríveis, humanos e socialmente conscientes. Lembro de tudo sempre, com muito carinho por cada uma que cruzou o meu caminho.
Solidão não compartilhada
Crônica do Livro “Solidões Compartilhadas”, de Tamiris Volcean, publicado pela editora Lyra das Artes
Primeiro, eu me odiei por não poder lavar o cabelo e arrumá-lo, destoando do padrão de figuras femininas. Depois, odiei usar sempre as mesmas roupas, ainda que estivessem limpas. Incomodou-me abrir mão dos excessos. Sem maquiagem, vestindo roupas básicas e de mochila nas costas, livrei-me dos padrões. E fiquei mal.
Odiei ser mulher. Odiei as outras mulheres por estarem sempre mais bem arrumadas e bonitas que eu.
Senti-me sozinha.
Foi neste momento que a solidão cumpriu sua função, abrindo uma fresta por onde enxerguei os milênios de imposições sociais que pesavam sobre meus ombros.
É fácil ser contra os padrões no discurso, mas quase ninguém conta o quanto é difícil não odiar a si mesma. Essa viagem me contou. Deu-me um tapa na cara. Mostrou-me o peso de florescer em ovários, vagina e útero.
Fui a um café na Russel Square, em Londres, e pedi um mocha para esquentar a alma. Tocava um jazz inglês ao fundo. O momento era tão bonito. No espelho rachado do banheiro, enxerguei-me imperfeita e fiz as pazes comigo mesma.
E com todas as mulheres do mundo.
Transformação. Metamorfose. Chame como quiser. Dores à parte, mochilar sozinha é isso: renascer a cada aparição do sol e amar as mil e uma versões de nós.